Apresso-me no trabalho.
Com o navio atracado em Veneza pela noite, devem haver poucos clientes a bordo... porque é que demoramos tanto tempo a encerrar?
Corro de um lado para o outro, suo no meu novo e ridículo uniforme tentando apressar a tão desejada saída do navio. Tenho três pessoas à minha espera e odeio fazer-me esperar.
Faltando paciência para aguardar pelo elevador, desço três andares mais pelos corrimões do que pelos degraus e entro na cabine 9660. Confirma-se a minha preocupação.
O Rodolfo joga playstation já de cabelo ajeitado na direcção do costume, talvez com um pouco mais de gel para aprimorar a ocasião.
Sem tempo para banhos então.
Vesti a túnica mais apropriada ao romantismo dos canais, molhei o cabelo ( este contrato recusei-me a moldá-lo com qualquer espécie de fixante) e telefonámos à Carissa para que viesse ao nosso encontro com a Caroline.
Respirei fundo. Ao que parece não só não havia pressa para sair, como queriam passar para um copo de vinho antes de nos fazemos ao caminho.
Batem as 23:30 e decido-me por não levar casaco sob a premissa do Rodolfo de que ele já levava um e que tinha a Carissa para o aquecer. Para frustração dos dois, é um cenário que não se espelha com a Caroline, mas aceito de bom grado o casaco e o argumento, se necessário.
Dos quatro, apenas Caroline domina o Italiano. Fruto de um ano em intercâmbio que recorda com mais saudades do que aquelas que expressa. Preocupa-se em não se tronar aborrecida e a gerência agradece.
Saímos do grande e enclausurante Disney Magic e somos abraçados pelo calor abafador de Veneza. Ainda não se cheiram os canais daqui mas já gondoleamos mais do que andamos pelo alcatrão do porto.
Todos os tripulantes pelos quais passamos vêm na direcção inversa: "Está tudo fechado" - acautelam-nos repetidamente.
Já nos haviam avisado antes. O que me fez vir com este pequeno e selecto grupo foi precisamente o facto de nenhum de nós se importar com isso. Não viemos a Veneza para nos embrenharmos nos flashes incessantes e no barulho silenciador dos clubes locais, cheios da mesma tripulação pela qual passamos diariamente.
Num raso de loucura espontânea íamos a Veneza para ver Veneza... A cidade não encerra só porque não nos é disposto o comércio turístico e os tours demasiado caros e objectivos. E o resultado desse desprendimento de objectivo a cumprir ou do percurso em si não poderia ter sido melhor.
A cidade tem um encanto especial pela noite. Não só pelo desertismo das ruas e dos canais ou pelo silêncio, pontuado com um grupo ou outro de jovens locais que apreciam vinhos e conversas nos inúmeros cais espalhados pelas margens. Essencialmente pela ausência de pressa para coisa alguma. A liberdade de se fazer o que se quizer, agora ou quando nos apetecer, por onde for.
É no entanto um local de extremos.
Paria no ar uma guerra sintomática: O secretismo labiríntico das ruas estreitas e dos canais quietos de um lado. A ordem gritada à rectidão dos edifícios estatais e o eco que reflecte no enorme vazio das praças outro.
As conversas prolongam-se por horas. Os assuntos sempre frescos e ambulantes, renovados a cada ponte que atravessamos.
Curiosas edificações, essas a quem chamamos de pontes. ..
Um elo de conexão em caso todo, nem terrenas nem astrais, tão práticas quanto litúrgicas.
Feminidade perfeita no engenho da ligação.
Chegamos à altura de decisões. Recito Mind da Gap por instinto "bazamos ou ficamos?"
Seguem-se opiniões parcas e pouco concisas.
"Por mais um par de horas vemos o nascer do sol em Veneza" - Intervenho de novo.
Contaram-se os sorrisos e a decisão foi unânime.
Seguiu-se um dia arrastado e de olheiras sombreadas sob as horas mais longas.
Mas compensou largamente.
Abreijos.