A sala estava vazia.
Chegámos nós, executantes, à hora marcada. Não fosse o nervosismo que se deixa ver pelos sorrisos que trocamos em silêncio, seria outro dia igual a tantos outros no Studio Sea. As paredes, pouco reveladoras à meia luz, contêm na multidão de esboços alguns dos espectadores mais difíceis do mundo. Atentos no no papel de parede estas personagens Disney já viram de tudo nos últimos 15 anos. No entanto são simpáticos o suficiente para deixar as cerca de 35 mesas e 120/140 lugares sentados vagos, em cadeiras de realizador. Lugares vãos, acrescente-se, uma vez que somos cerca de 1000 tripulantes. Não terão todos a disponibilidade ( ou a vontade) de vir hoje mas, uma vez que se trata do último espectáculo exclusivo para a tripulação a ser feito neste espaço emblemático, esperamos que pelo menos metade encontre tempo e disposição.
Os cocktails criados especialmente para o efeito ajudam.
Os passos apressam-se, termos montado um espectáculo de 7 actos, sem paragens, sem que nunca tenhamos tentado um ensaio conjunto..... define uma linha muito fina entre um espírito empreendedor embebido de uma enorme força de vontade... e uma enorme e redonda estupidez. Em saudação da verdade, a partir do 3º acto, não faço a mais pequena ideia do que aí vem. No que me diz respeito, cabe-me a responsabilidade da abertura do espectáculo, a solo. Responsabilidade que aceitei apenas para ajudar um "algém" de quem gosto muito e que se sentia demasiado intimidado para o fazer.... confesso que não foi uma escolha pensada (Raio de sensibilidade a minha).
Este facto seria suficiente para que neste momento a minha contagem de batimentos cardíacos não fosse a mais homogénea que me vem à memória mas, como não sei limitar os ataques de verborreia que por vezes me assolam e fazem com que da minha boca jorrem pacotes de disponibilidade instantânea, entro em mais dois números musicais.... SEGUIDOS!
Assim só necessito de me esbardalhar ( expressão magnífica esta não é?.. .esbradarlhar... gosto) no 1º acto a solo para encavalitar os outros dois!
Sejamos objectivos:
Cadeira - check
Suporte - check
Microfone - check
Luna - check
Cabo - check
Tenho tudo, abram-se as portas e "fiat lux".
A fila impedia já a circulação dos elevadores 2 andares abaixo. Esqueci-me da estimativa que fiz e perdi-me na contagem de cabeças. 20 minutos depois já estamos cheios. Bebidas circulam quase com a mesma velocidade que os comentários aos vestidos das "outras"... uma cereja que faltava no topo do bolo dos 7 actos... espírito crítico.
- Vamos começar? - Pergunta o Rodolfo. Faço um sorriso com meia vontade e aceno com a cabeça
- "Vamos lá ver como é que é para contar como é que foi" - Neste momento de aperto não me ocorreu mais nenhuma frase de distribuição automática.
Empurro a porta que não me recordo de ser tão pesada e ouço a voz do Rodolfo ampliada no sistema de som. Esforça-se por fazer atingir o clímax na multidão expectante que me espera do outro lado. O cheiro a backstage enche-me as narinas. É um cheiro difícil de descrever e esforço-me ao máximo para o colocar numa das prateleiras principais da minha memória. É uma mescla compreendida entre o mofo, o pó e o carbono da madeira que sei que mais tarde vai simbolizar um momento na minha vida. Faço uma oração enquanto ouço a apresentação no sistema de som, que me lança lá fora tal gladiador aclamado. Lanço as mãos à cortina e faço um ar confiante, de quem faz isto todos os dias.... esqueci-me do sorriso nos bastidores. Ficou ao lado do génio que gritava aos ouvidos mensagens de medo e pânico.
Aceno ao infinito. Com as luzes apontadas a mim de facto não consigo distinguir ninguém.
Luna ao colo, ajeito o microfone e tento ganhar tempo com afinações mínimas na guitarra que pela forma como treme está tão nervosa quanto eu. Resolvo lançar uma piada para quebrar o gelo.... o meu. Em jeito de kickstart, as mãos ganham vida e começam a tocar a música em tempo certo... agora já não posso voltar a trás.
O tempo está a chegar... aproximo a boca do microfone.
Aquele momento em que tudo se move mais lento... tudo o que ouço é a minha pulsação e a minha última respiração ampliada no sistema de som.
Começou.